domingo, 18 de outubro de 2009

servos por amor gratuito!


LECTIO DE 18/out/2009
Mc 20, 35-45

UM PAPO SERÍSSIMO! Segura aí! Não seja covarde, nem medroso e não invente de se esconder. NÃO FUJA! LEIA, REZE, PENSE, DECIDA!
A palavra de hoje nos insere no vértice da vocação cristã. A ambição dos discípulos, direcionada aos cargos ou lugar de honra, ou mesmo afirmando e buscando garantir o triunfo junto do Messias revelam o coração humano e suas megalomanias (as manias de ser grandão, o maioral, o rei da selva - tendências leoninas). Parece este leão que se julga do dono do pedaço, abafando e arrasando!
O que pedis? O que quereis que eu vos faça? Esta pergunta de Jesus é muito séria e muito importante. Ele quer fazer e quer nos atender. Mas, fica o questionamento: qual o conteúdo do nosso querer? Que desejamos? Onde se inclina a nossa vontade? Para onde nos leva o nosso coração? Que que você anda querendo. Palha, lodo, lama, ouro, prata? Sabe distinguir o ouro da prata? a prata do lodo? o lodo da palha? O que é importante? O que é que tem valor? Você sabe? Quais os critérios que você usa?
Ao ouvir a solicitação dos discípulos na linha da grandeza, dos cargos, das facilidades e do triunfalismo, a resposta do Mestre reconduz a compreensão da vitória e da primazia que cada discípulo do Reino deve almejar.
Ele não oferece cargos, nem prestígio, nem honras, nem mesmo o sucesso: ele oferece o cálice da ira o qual deve ser esgotado (cf. Jr 25, 15-29; Is 51, 17). Os dois discípulos entenderão isso: Tiago morrerá mártir de martírio vermelho (será morto por Jesus e pelo Evangelho derramando o próprio sangue cf. At 12, 1-12) e João terá que sofrer por Jesus e no seus escritos deixará um inenarrável testemunho da primazia do amor-caridade-serviço. Isso é algo de enaltético! Só o tchekslovekibite!

Na Bíblia o Peregrino há um comentário belíssimo e eu o transcrevo aqui:
“... a comunidade do Messias rege-se por princípios opostos aos do mundo. Nela, a ambição será substituída pelo espírito de serviço. Não é que o serviço seja meio para conseguir o primeiro lugar, mas que no serviço reside a dignidade. Não em virtude de um oráculo individual (como em Gn 25, 23), nem por uma desordem social (como diz Ecl 9, 6-7), mas por um preceito e pelo exemplo de Jesus (visto como servo de Is 53, 10).
Na menção do cálice e da imersão, o cristão pode ler nas entrelinhas uma alusão ao batismo e à eucaristia como participação na paixão de Cristo (Rm 6, 3-4; 1Cor 11, 26)”

(L. A. SCHöKEL, Bíblia do Peregrino, 2ª ed., S. Paulo, 2006, p. 2426).

Os primeiros lugares no Reino a quem caberá? Meu Deus! Livre-nos o Senhor desta pergunta: é para quem o Senhor quiser. Não nos cabe ambicioná-los. Quem os ambiciona, deles se exclui! Cabe-nos amar, servir, dar a vida. O que vem após isso, bem, não é da nossa conta. Basta que Deus saiba e na liberdade infinita que lhe caracteriza faço o que bem entender.
Alguém disse que o caminho da fidelidade a Deus por medo do inferno é o caminho dos escravos. A busca das recompensas é o caminho dos mercenários. A filiação amorosa e confiante, o serviço generoso e desinteressado é o caminho da união perfeita para com Deus aprofundarão o zelo e o desejo de dar-se servindo. A confiança cristã não se baseia só na cruz, senão a cruz se tornará uma ideologia, monstruosidade. Atrás da cruz está o amor do Pai. É este amor que nos escolheu em Cristo e para Cristo. Nós mesmos, somos, para o Cristo, o dom que o próprio Pai tem reservado ao seu querido Filho. Idéia fantástica e inusitada: Nós o presente do Pai para seu Filho!
Jesus toma a contramão. E tome barruada! Responde às perguntas dos discípulos oferecendo a proposta radical: dar a vida! Fazendo a proposta da pequenez: ser escravo dos irmãos! Fazendo a proposta do amor e da realeza divina: o serviço. Sem minoridade não existe fraternidade.
Nosso Senhor conhece o coração com sua mania de grandezas. O homem é feito para se levantar da sombra e andar erguido, dentro da luz. Mas o coração humano se perverte e usa a grandeza para diminuir o outro, servir-se do outro, explorar o outro. Parece que, somente amarrando o outro na sua insignificância, a pretensa grandeza parece grande. Terrível! Quem faz isso é, aos olhos de Deus, um jeguenow (burro).
Jesus segue na contramão: quem governa as nações as dominam, e os seus grandes as tiranizam. Como é triste ver que quem foi chamado e eleito ou de algum modo chegou ao poder, ao invés de servir o povo, serve-se do povo. Ao invés de buscar o verdadeiro bem das pessoas, pelo populismo ou pela opressão tirânica, alguns governantes vão ao encontro de interesses que deixam a vida mais cômoda, não buscam o melhor e o mais certo, mas o mais fácil e mais gratificante para o egoísmo humano. E, às vezes, buscam o que é cômodo para si, com a meta de unicamente manter-se no poder. Para manter-se no poder são capazes de tudo. Será que isso existe ainda hoje?
Nosso Mestre aponta o caminho certo para os seus discípulos: o serviço, assim como ser escravos dos irmãos e irmãs. Serviço da verdade, serviço da caridade. O cristão, ao ser comparado ao sal e à luz (cf. Mt 5, 13-16) recebeu de Jesus uma imensa responsabilidade. Agir e ser elemento de transformação. O discípulo de Cristo aceita a desafiante proposta de ser diferente e fazer a diferença. Iluminando e dando sabor, preservando da corrupção a vida cristã é marcada por um dinamismo enorme. Trata-se da dinâmica do compromisso, da força da responsabilidade. Pense num negócio chopanestérico e anaximândrico, panelático e extragótico! Algo supimpa e inoxidável!
A disponibilidade ao serviço do outro é a verdadeira medida da grandeza e precedência na comunidade. Toda função de governo deve estar, exclusivamente a serviço da comunidade. Como Cristo é fonte de Deus em nós, assim nós também, pelo serviço, queremos ser para os outros, fonte de felicidade e confiança. A gratuidade é a lei de Cristo! Quem mais serve os outros sem recompensa, tem semelhança com Cristo. Por isso, quem não vive para servir, não serve para viver. Quem topa qualquer parada, não para em qualquer topada.
Um abraço pra vc filoteu!

sábado, 17 de outubro de 2009

Pobres que valorizam o dom de Deus


Em nenhuma hipótese, se confunda desapego com desprezo. O livro do Gênesis, como vimos, nos mostra o quanto Deus se alegra por ter dado vida a todas as obras da criação e o quanto ele enfatiza a bondade e o valor das obras surgidas de suas mãos. O apóstolo também ensina: «Pois tudo o que Deus criou é bom e nada é desprezível»[1]. «Foi pela fé que compreendemos que os mundos foram criados pela palavra de Deus. Por isso, o mundo visível não tem a sua origem, em coisas manifestadas»[2].
E neste mistério da ação de Deus nos lançamos pela fé nos braços d'Aquele que na sua invisibilidade se deu a conhecer e, mergulhados na nossa finitude, reconhecemos cheios de gratidão a grande obra que o Senhor fez, dando-nos a vida.
Mesmo às apalpadelas, seguramos e mantemos acessas a lâmpada da fé e esperamos vigilantes o seu retorno a exemplo das virgens prudentes[3]. E essa vigilância se consolida e se arma dos meios de uma intensa fé que se defende de toda concepção racionalista ou materialista de um mundo que surge e se desenvolve sem Deus, negando-lhe a existência ou vivendo como se Ele nem existisse, considerando-O um ser distante, um alguém ausente, uma entidade a ser simplesmente ignorada e desprezada.
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[1] 1Tm 4, 4.
[2] Hb 11, 3.
[3] Mt 25, 1-13// Lc 12, 35-38. O tema da vigilância é muito enfatizado por Mt 24, 42-44; Lc 12, 35-40.

Reconhecer o nada




O reconhecimento do nada é a verdade consumada. Isso nos faz caminhar. Há de ser o antídoto poderoso contra certas formas explícitas ou camufladas de orgulho e de soberba, ajudará a pessoa a não viver de ilusões, nem na mentira. As dificuldades serão não somente suportadas, mas também superadas e até amadas com maior facilidade. E isso só acontece no coração humilde, despojado, vazio de si, da própria glória. Por isso, ocorre compreender que «só a humildade tem algum poder. Não a humildade adquirida por raciocínios, mas uma luz clara e verdadeira que num instante capta o que o trabalho da imaginação não alcançaria por muito tempo, acerca do nosso nada absoluto e do bem infinito que é Deus»[1].
Esse nada, por mergulhar a pessoa na verdade, criará um clima de serenidade e de alegria, porque o despojamento livra o coração de tantas preocupações inúteis.
«É humilde, ensina S. João da Cruz, quem se esconde em seu próprio nada e sabe abandonar-se a Deus»[2].
Não existe auto-estima sem um mergulho corajoso na verdade de Deus e na nossa própria verdade. A autopercepção, além de positiva, há de ser verdadeira, fundada na realidade, longe das ilusões fantasiosas e enganosas. Tudo isso fará com que a pessoa tire os olhos das criaturas, no que diz respeito a esperar muito delas, nas suas capacidades e talentos, na santidade ou nas virtudes que possam ter, das vantagens e gratificações que sua amizade possa nos oferecer. Os olhos do que vive na verdade se fixarão em Deus como o único sumo Bem. As pessoas humanas serão vistas na sua verdade e realidade.

Declama com imensa sabedoria a grande doutora, Teresa de Jesus:

«Formosura que excedeis
A toda formosura,
Sem ferir, que dor fazeis!
E quão sem dor desfazeis
O amor pelas criaturas!

Ó laço que assim juntais
Dois seres tão diferentes
Por que é que vos desatais
Se, atado, em gozos trocais
As dores mais pungentes?

Ao que não tem ser, juntais
Com quem é Ser por essência
Sem acabar, acabais;
Sem ter o que amar, amais;
E nos ergueis da indigência
»[3].


Deste modo não haverá possibilidade de se espantar ou se escandalizar com os erros ou fraquezas que o outro venha a manifestar. As decepções serão sobremodo redimensionadas e trabalhadas, se é que existirão. Esperar em Deus significa não esperar em ninguém mais, em nada mais a não ser o próprio Deus.
«A justa "estima" de si mesmo é, portanto esta: reconhecer o nosso nada! Este é o terreno sólido ao qual tende a humildade! A pérola preciosa é precisamente a sincera e pacífica persuasão de que, por nós mesmos, não somos nada, podemos pensar nada, não podemos fazer nada»[4]. Existe, portanto, um Doador e o que recebe agradecido e feliz esta doação. Por amor, administra esta doação no melhor dos modos. Com muita propriedade afirmou um certo autor: «Somente quando me volto para o doador de tudo, com o coração de mendigo que sabe ser imensamente pobre, que sabe não ser mais que puro dom, somente então estou na dimensão que me corresponde»[5].
O nada nunca pode chocar quem vive na verdade. A verdade nos levará a conhecer o Tudo de Deus e, por conseguinte, nós como felizes beneficiados, pois nada somos, nada temos, nada podemos. E essa mentalidade levará a pessoa a viver numa profunda humildade, pois a humildade é a mais consumada verdade. Assim nos ensina S. Teresa de Jesus: «Deus é a suma verdade – e ser humilde é andar na verdade. Grande verdade é que de nada de bom procede de nós, a não ser miséria de ser nada. Quem não entende isso anda na mentira. Quem melhor o entender, mais agradará à suma Verdade, porque anda em sua presença»[6].
A auto percepção positiva de si mesmo deve ajudar a pessoa a se colocar na linha de ter o sentido das próprias limitações e criar no homem a disposição para a aceitação realista de si mesma. Essa disposição de ânimo, que se traduz numa sadia humildade e na simplicidade autêntica, vai levando a pessoa a encarar o outro e Deus de modo muito maduro e evangélico. O outro é acolhido e respeitado como um tu que é diferente, talvez mais aquinhoado do que eu e, isso nunca será razão para invejas, ciúmes, desconfianças e perseguições. Ao contrário, será algo como que se alegrar, a ser considerado positivo. A pessoa madura não se compara e se perceber no outro predicados e virtudes que ela não tem, isso não a ameaça, pois ela se aceita e não quererá ser o outro, alegra-se, conserva a paz na serenidade e se esforça para construi-se enquanto pessoa: ser único e irrepetível. O homem que se aceita, outrossim, se percebe e se acolhe a si mesmo como um ser limitado, coloca-se em justa dependência de Deus e em correspondente sentimento de segurança e confiança[7]. Será um alguém que entendeu bem o sentido de ter vindo do pó da terra[8]. Conhecerá a sua criaturalidade e sua contingência. Não viverá de ilusões e no engano do orgulho. Será humilde, será feliz.
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[1] S. TERESA, Caminho, c. 32, n.12. Os grifos são meus.
[2] S. JOÃO DA CRUZ, Ditos de Luz e Amor, n. 173 in P. SCIADINI (org.), Obras Completas, Vozes/Carmelo Descalço do Brasil, Petrópolis, 20006.
[3] SANTA TERESA, carta 165 in P. SCIADINI (org), Obras Completas, ed. Carmelitanas/Loyola, S. Paulo, 1995 . A santa escreve este poema em uma carta dirigida a seu irmão, D. Lourenço de Cepeda.
[4] R. CANTALAMESSA, A vida sob o senhorio de Cristo, Loyola, 19964, p., 194.
[5] CABRA, Amarás com todas as forças, 11.
[6] S. TERESA DE JESUS, Castelo interior ou moradas, VIas moradas, c. 10, n. 7.
[7] Cf. D. CASERA, Psicologia e aconselhamento pastoral, Paulinas, S. Paulo, 1985, p. 61.
[8] Cf. Gn 2, 7.

A pessoa humana e sua dignidade



Aos homens e mulheres, criados à imagem e semelhança de Deus foi confiado o domínio de toda a criação[1] e lhes foi concedido o dom de serem pessoas, isto é, seres irrepetíveis, incomparáveis. A relação com Deus assume uma perspectiva de similitude geral de natureza: inteligência, vontade, poder[2]. «e o fizestes pouco menos do que um deus, coroando-o de glória e beleza. Para que domine as obras de suas mãos sob teus pés tudo colocaste»[3]. Por isso, professamos que «todo homem e toda mulher, por mais insignificantes que pareçam, têm em si a nobreza inviolável que eles próprios e os demais devem respeitar e fazer respeitar»[4].

A grandeza e a dignidade da pessoa humana faz brotar a possibilidade de buscar razões, buscar um sentido para tudo o que existe. Poder ir até as causas mais profundas, explicações que exigem por sua vez mais respostas, para novos e ininterruptos questionamentos que nascem.
«Os animais do campo, comenta S. Agostinho, sejam grandes ou pequenos, a vêem, mas não podem fazer-lhes perguntas. Não lhes foi concedida razão capaz de julgar mensagens dos sentidos. Aos homens, porém, é dado indagar para perceberem o Deus invisível através da compreensão das coisas criadas»[5].

Deus o abençoe e ajude a cultivar o senso desta beleza e desta dignidade: os que foram criados à imagem e semelhança de seu Criador!

[1] Cf. Gn 1, 26-27.
[2].Cf. Bíblia de Jerusalém, nota n, p.32.
[3] Sl 8, 6-7.
[4] CELAM, Evangelização no presente e no futuro da América Latina. Conclusões da III Conferência geral do Episcopado Latino-Americano, 13-02-1979 n. 317. Editado pelas Paulinas, S. Paulo, 1979. Usaremos doravante a sigla DP = Documento de Puebla.
[5] S. AGOSTINHO, Confissões, L.10, n.10.

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

o pobre Lázaro: uma reflexão!




As exigências da justiça social no Evangelho: o exemplo de Lázaro, o pobre.

«havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho fino e cada dia se banqueteava com requinte. Um pobre, chamado Lázaro, jazia à sua porta, coberto de úlceras. Desejava saciar-se do que caía da mesa do rico... e até os cães vinham lamber-lhe as úlceras. Aconteceu que o pobre morreu e foi levado pelos anjos ao seio de Abraão. Morreu também o rico e foi sepultado.
Na mansão dos mortos, em meio a tormentos, levantou os olhos e viu ao longe Abraão e Lázaro em seu seio. Então exclamou: “Pai Abraão tem piedade de mim e manda que Lázaro molhe a ponta do dedo para me refrescar a língua, pois estou torturado nesta chama”. Abraão respondeu: “Filho, lembra-te de que recebeste teus bens durante tua vida, e Lázaro por sua vez os males; agora, porém, ele encontra aqui consolo e tu és atormentado. E além do mais, entre nós e vós existe um grande abismo, a fim de que aqueles que quiserem passar daqui para junto de vós não o possam, nem tampouco atravessem de lá até nós”.
Ele replicou; “Pai, eu te suplico, envia então Lázaro até à casa de meu pai, pois tenho cinco irmãos; que leve a eles seu testemunho, para que não venham eles também para este lugar de tormento”.
Abraão, porém respondeu: “Eles têm Moisés e os Profetas: que os ouçam”. Disse-lhe ele: “Não, pai Abraão, mas se alguém dentre os mortos for procurá-los, eles se arrependerão”. Mas Abraão lhe disse: “Se não escutam nem a Moisés nem aos Profetas, mesmo que alguém ressuscite dos mortos, não se convencerão»
[1].

Este texto, todo transcrito nesta postagem tem como objetivo mostrar a responsabilidade e o compromisso dos cristãos, especialmente os que possuem mais recursos, neste processo de administrar os bens de Deus. Todo este capítulo 16 de Lucas é uma inteira catequese sobre o uso das riquezas. Trata-se de uma parábola proposta de considerar a condição presente à luz da eternidade.
O homem rico que usava mal dos seus recursos materiais, porque o seu egoísmo profundo o centralizava em si mesmo, nas próprias comodidades e nos próprios caprichos é um ensino forte, exigente, comprometedor. Como se percebe, é um alguém sem nome, um anônimo nesta história de salvação uma vez que no seu egoísmo, ele se excluiu da salvação de Deus. Este rico é imagem de um alguém despersonalizado, em vista de sua existência falida, esterilizada, tornado infrutífero pela sua centralização em si mesmo. Não pensar nos outros necessariamente significa ignorar o próprio Deus, Ele que é uma comunidade, a plena comunhão, a partilha, diversidade e unidade no seu mistério trinitário. O eu se descobre relacionando-se com um tu, para formar um nós. Quem não se relaciona não ama e quem não ama não pode descobrir-se. O rico ficou conhecido como epulão, isto é, banqueteador, um comilão. Como dizia Paulo, «seu fim é a destruição, seu deus é o ventre, sua glória está no que é vergonhoso, e seus pensamentos no que está sobre a terra»[2]. Jesus tira o pobre do anonimato: ele tem um nome, ele é alguém, seu nome é Lázaro que significa “Deus ajuda”. Fome e doença o fazem prostrar-se diante da porta do rico, esperando de matar a fome de tudo que cai na mesa do rico, esperando de matar a fome de tudo que cai da mesa farta do abastado egoísta. Até mesmo o cachorro tem piedade de Lázaro e o rico não percebe, é negligente.
Esta parábola nos oferece um quadro feito de imagens muito sugestivas, simples, de tonalidades fortes, sem detalhes ou refinamentos literários. É por isso que nos obriga a buscar sinceramente o essencial. De fato, no tempo o homem decide o seu destino eterno, vida ou morte, e não existe outra possibilidade de opções. Quem confia em si mesmo e em uma felicidade egoísta, construída com as próprias mãos, entra nas trevas e desde já é um cego, ao ponto de não ver o mendigo sentado à porta de casa.
O silêncio do pobre mendigo parece ser o traço característico do vulto de Lázaro. Duramente provado pela vida, descuidado por aqueles que poderiam ajudá-lo, ele se cala. Nenhuma palavra contra Deus ou contra os homens. Nem rebelião, nem críticas, nem inveja. A morte chega para Lázaro como uma libertação. O sono que desfecha o percurso terreno se apresenta como um divisor de águas implacável, determinante e sob a luz inatacável da verdade que brota de Deus cada qual segue o seu infalível destino eterno. Cada um colherá o que plantou.
Jesus retira o véu e nos introduz na eternidade mostrando-nos o grande banquete da eternidade. Lázaro é um dos destacados comensais. É como diz a Escritura: «Levanta do pó o fraco e do monturo o indigente, para os fazer sentarem-se entre os nobres e colocá-los num lugar de honra»[3]. Oposta é a sorte do rico que entre os tormentos infernais vê o pobre do outrora e ousa pedir auxílio para sua inexorável pena. O ardor lhe devora o paladar, o mesmo paladar que antes de deleitava em finas iguarias. As opções da vida presente selam de maneira definitiva a imutável as condições da vida eterna. Por isso, como o apóstolo Paulo, o cristão pensa e vive em função da eternidade: «Mas a nossa cidade está nos céus, de onde também esperamos ansiosamente como Salvador o Senhor Jesus Cristo, que transfigurará o nosso corpo humilhado, conformando-o ao seu corpo glorioso, pela força que lhe dá poder de submeter a si todas as coisas»[4].
Nem mesmo um milagre como a ressurreição de um morto – diz Jesus fazendo alusão a si mesmo – poderia aliviar o endurecimento do coração de quem incessantemente se recusa a escutar e levar à sério o que dizem as Escrituras. Quem converte e salva não são necessariamente os prodígios (até a ressurreição de Lázaro[5], da filha de um chefe[6], do filho da viúva[7] e do próprio Senhor[8]) não foram suficientes para convencer as pessoas fechadas e de coração duro. Sobre estas dificuldades da aceitação das óbvias evidências da ressurreição do Senhor por parte das lideranças religiosas do tempo de Jesus, se percebe o quanto essa verdade é grande. Eles tiveram uma ótima oportunidade de tornarem-se testemunhas da ressurreição de Jesus e permaneceram expectadores que preferiram vantagens materiais, prestígio e acomodação. Caminharam na mentira. Por isso, nem a ressurreição do Senhor para estes conseguiu mudar os rumos de uma opção direcionada por um coração endurecido. Somente um encontro silencioso, humilde, orante e meditativo, reflexivo e contemplativo com a Palavra de Deus. Um encontro que leve a pessoa a se dispor a viver e transbordar o mistério contemplado, somente isso poderá levar a uma transformação consistente de quem necessita de encontrar-se com o perdão e a graça revigoradora de Deus. São Luís Gonzaga, outrora nobre, fez-se religioso; ele reflete com muita sabedoria e precisão sobre esta realidade: «Não devemos blasonar por causa do nosso nascimento, porque no fim da vida as cinzas de um príncipe não se distinguem das de um pobre qualquer!
Quem mais alto está por destino do nascimento, pela riqueza de bens, pela elevação da cultura e do engenho, tanto mais deve prestar contas a Deus dos seus atos e da sua vida.
Quanto menor do que os outros o homem se fizer, tanto maior será, porque quanto mais alguém é humilde, tanto mais semelhante é e chegado a Cristo, o qual será acima de todos»[9]. Nesta mesma linha S. Gregório Magno ensina: «Que cada um seja juiz equilibrado entre si e os pobres. Que uma comiseração alegre e segura descarte qualquer falta de confiança; e aquele que ajuda ao indigente compreenda que está dando a Deus a esmola que distribui»[10].
Comenta o doutor místico: «Os sabores que deliciam o paladar ocasionam diretamente gula e embriaguez, cólera e discórdia, falta de caridade para com o próximo e os pobres, como teve para com Lázaro aquele mau rico, que se banqueteava cada dia esplendidamente (Lc 16, 19). Daí nascem ainda as indisposições corporais, as doenças, e também os movimentos desregrados, porque se aumentam os incentivos da luxúria. Por sua vez, fica o espírito como submerso em grande torpor; o desejo e o gosto dos bens espirituais diminui de tal sorte que já não os pode suportar, nem mesmo se deter ou se ocupar neles. Esse gozo produz ainda o descontentamento de muitas coisas, distração dos demais sentidos e do coração»[11].Lázaro é acolhido pelos anjos do céu e Deus quer que os Lázaros de hoje sejam acolhidos pelos anjos da terra que são os cristãos os quais como mensageiros do Senhor devem assumir a realidade forte e exigente que somente a fé permite de enxergar: Lázaro é Jesus, o Cristo, disfarçado. Se lermos atentamente o texto de Mateus a respeito do juízo universal poderemos nos convencer disso[12]. Com efeito, uma figura sobrenatural emana da figura de Lázaro: é Jesus o qual não considerou um tesouro imperdível a sua natureza divina, mas se fez pobre para nos fazer participantes dos seus bens. Seu eterno e infinito amor O faz apresentar-se nas vestes da humildade e o fez atravessar o abismo existente entre o céu e a terra. E Jesus se senta à porta do nosso coração e bate... : «Eis que estou à porta e bato: se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele e ele comigo»[13]. Que Ele não permaneça faminto nos irmãos por não termos aberto para ele a porta do nosso coração como foi o caso do rico epulão.
[1] Lc 16, 19-31.
[2] Flp 3, 19.
[3] 1Sm 2, 8.
[4] Flp 3, 20-21.
[5] Cf. Jo 11, 1-44.
[6] Cf. Mt 9, 18-19.23-26. Veja-se também Mc 5, 21-24.35-43 e Lc 8, 40-56.
[7] Cf. Lc 7, 11-17.
[8] Cf. Mt 128, 11-15.
[9] R. BRUNELLI, Um homem chamado Luís, Loyola, S. Paulo, 1991, p. 113.
[10] S. GREGÓRIO MAGNO, Sermão sobre as coletas, XI sermão in Sermões, Paulus, S. Paulo, 1996, n. 2.
[11] S. JOÃO DA CRUZ, Salita del monte Carmelo, L. III, cap. 25.
[12] Cf. Mt 25, 31-46.
[13] Apc 3, 20.

A justiça na Escritura Sagrada

Como poderemos compreender a justiça a partir da Sagrada Escritura? A própria Escritura fala por si. Os profetas, Jesus, os apóstolos foram pregoeiros deste elemento fundamental do cristianismo. Não se pode entender o discipulado para com a pessoa de Jesus sem a comunhão de bens, sem o devido desprendimento em função de um bem maior que é o bem de todos.

A Escritura, na força dos profetas exprime um grito fortíssimo em favor dos fracos, dos excluídos e oprimidos. Uma das vozes mais eloqüentes é a do profeta Amós quando denuncia aqueles que enganam, roubam com balanças adulteradas, os que compram o fraco com prata e o indigente por um par de sandálias[1]. O profeta Miquéias denuncia os ricos cheios de violência, as mentiras dos habitantes e as falsidades[2]. O profeta Isaías empresta seus lábios para Deus denunciar o seu povo: «Ai dos que promulgam leis iníquas, os que elaboram rescritos de opressão para desapossarem os fracos do seu direito e privar da sua justiça os pobres do meu povo, para despojar as viúvas e os órfãos»[3]. A literatura sapiencial também aborda esta realidade: «Ao homem do seu agrado ele dá sabedoria, conhecimento e alegria; mas ao pecador impõe como tarefa ajuntar e acumular para dar a quem agrada a Deus»[4].

O Novo Testemento encontra em São Tiago um caloroso defensor dos pobres. Ele já afirmava, na sua epístola, em tom de denúncia: «Meus irmãos, a vossa fé em Nosso Senhor Jesus Cristo glorificado, não deve ser admitir a acepção de pessoas. Assim, pois, se entrarem em vossa reunião duas pessoas, uma trazendo um anel de ouro, ricamente vestida, e a outra, com suas roupas sujas e derdes atenção ao que se traja ricamente e lhe disserdes: “Senta-te aqui neste lugar confortável” enquanto dizeis ao pobre: “Tu fica em pé aí, ou então: “Senta-te aí em baixo do estrado dos meus pés” não estais fazendo em vós mesmos discriminação? Não vos tornais juízes com raciocínios criminosos? Atentai para isto, meus irmãos: não escolheu Deus, os pobres em bens para serem ricos na fé herdeiros do Reino que prometeu ao que amam? E, no entanto, vós desprezais o pobre! Ora, não são os ricos que vos oprimem, os que vos arrastam aos tribunais? Não são eles os que blasfemam contra o nome sublime que foi invocado sobre vós? (...). Mas se fazeis acepção de pessoas cometeis um pecado e incorreis em condenação da Lei como transgressores»[5]. Prosseguindo sua denúncia profética, São Tiago nos ajuda a ver a gravidade de uma postura de dependência das riquezas quando estas submetem o rico ao ponto deste oprimir e explorar os mais pobres. Falaremos mais adiante destes que até ajudam e se tornam benfeitores de obras de caridade, porém nem podem imaginar a idéia de transformação das estruturas injustas e pecaminosamente desiguais. Noutras palavras, as soluções paliativas, imediatas podem ser mantidas, mas que as vítimas permaneçam para que o lucro e as vantagens não sejam comprometidos. A esses, a denúncia vigorosa do apóstolo se faz ouvir: «Pois bem, agora vós, ricos, chorai e gemei por causa das desgraças que estão para vos sobrevir. A vossa riqueza apodreceu e as vossas vestes estão carcomidas pelas traças. O vosso ouro e a vossa prata estão enferrujados e a sua ferrugem testemunhará contra vós e devorará vossas carnes. Entesourastes como que um fogo nos tempos do fim! Lembrai vos de que o salário do qual privastes os trabalhadores que ceifaram os vossos campos, clama e os gritos dos ceifeiros chegaram aos ouvidos do Senhor dos exércitos, vivestes faustosamente na terra e vos regalastes; vós vos saciastes no dia da matança»[6].

João, o evangelista, que antes proclamara que «Deus é amor»[7] afirma que viver a vida de Deus significa também amar. Este amor, longe de especulações ou sentimentalismos vazios e alienantes significa não amar apenas com palavras e com a língua, mas com ações e em verdade[8]. Amar significa dar a vida pelos irmãos[9]. E dar a vida significa viver a partilha, a comunhão: «Se alguém, possuindo bens neste mundo, vê seu irmão na necessidade e lhe fecha o coração, como permanecerá nele o amor de Deus?»[10].

[1] Cf. Am 8, 4-6.
[2] Mq 6, 12.
[3] Is 10, 1-2.
[4] Ecl 2, 26.
[5] Tg 2, 1-7.9.
[6] Tg 5, 1-5.
[7] 1Jo 4, 8.16.
[8] 1Jo 3, 18.
[9] 1Jo 3, 16.
[10] 1Jo 3, 17.