sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Por uma paidéia democrática!


O tema da educação e pedagogia gregas constitui uma vitrine de notável importância para captar a visão humana e humanista que marcou a cultura grega. Berço das primeiras grandes conquistas do pensamento e das lapidares sínteses filosóficas, a Grécia teve produções geniais no campo da literatura e das artes. Por isso, tornou-se berço da cultura do mundo ocidental e da nossa sociedade. A valorização da pessoa humana e sua dignidade como também de sua liberdade foi fundamento da cultura grega. Tal está em contraste com as idéias das grandes civilizações antigas onde as pessoas individualmente eram mortificadas e usadas como elemento construtivo das pirâmides sociais, o que culmina no absolutismo de quem detém o poder. Prevalece aqui a classe guerreira. Também são influentes os escribas e detentores da cultura, bem como os funcionários daquela estrutura político-social na qual se enquadra a instrução.



Na cultura grega, nasce o ideal de formação do cidadão da pólis. Eis o ideal educativo expresso com a palavra Paideia. Entre seus pontos mais importantes cabe destacar:


1. Um grande senso do valor do homem: compreeendido em todas as energias e de todos os dotes da natureza humana, não tomados em abstrato, mas em concreto no indivíduo. Valor no senso de valentia, excelência, superioridade. Expresso tal valor compreensivamente pelo termo grego areté, traduzido aproximativamente como "virtude".

2. Disso resulta uma grande abertura a todos os valores humanos: desde os valores físicos (celebrados através das competições pan-helênicas e olimpíadas, perpetuadas pelos poetas e pelo pincel dos artistas), até os da inteligência (levados ao máximo nas escolas filosóficas e nas produções de arte) até aqueles da vontade e da liberdade (expressos na vida civil nas democráticas assembléias dos agorás e nas participações dos cidadãos das cidades-estado livres). Os agorás eram lugares onde os cidadãos se reuniam para falar livremente de seus problemas e dizer sem medo o que pensam, claro, sempre comprometidos com o bem comum. Aqui estamos diante de uma educação eminentemente humanista (pela tendência à formação de um homem ideal) e liberal (pela cordial aversão e prático descurar das atividades operosas e das formas de vida que eram consideradas indignas de um livre cidadão grego e digna somente dos escravos).

A paidéia era pois, a projeção sobre formação do cidadão onde a harmonia visava a fusão harmônica do belo e do bom. O belo da perfeição física e o bom entendido como resultante das mais variadas habilidades humanas de sabedoria, prudência, de cultura, de capacidade política. Com a democracia ateniense vem à baila um conceito de areté fundada na igualdade de todos perante a lei (isonomia) e o reconhecimento do papel decisivo das leis na educação cívica.

Sócrates (469-399 a.C.) educador da juventude, restabeleceu a confiança na validade objetiva da razão, através da descoberta do "conceito" que superando a subjetividade e os limites da sensibilidade colhe o que no conhecimento é universal e, portanto, objetivamente válido. Valores humanos tornam-se a base segura da educação. A orientação moral visa o fim do homem, a saber, a felicidade. E para atingi-la, ocorre percorrer um ordenamento virtuoso, inseparável com o reto conhecimento. A maieutica socrática, essencialmente dialógica, é marcada pelo ativismo didático e educativo. A educação constitui um processo interior. Platão (428-348 a.C.) apresenta a idéia como a fundação objetiva dos valores, mas continua a austera linha pedagógica, tanto do ponto de vista intelectivo (a contemplação filosófica da verdade) quanto do ponto de vista ético. Destaca-se a ascese, da separação do mundo das sombras para viver a reconquista das idéias como elemento fundamental da educação. Para ele, a virtude cardeais da prudência, justiça, fortaleza e temperança são fundamentais para o equilíbrio dos apetites. Destaque seja dado, no pensamento do filósofo, a figura dos filósofos-governantes enquanto educadores do povo. Chega-se, assim, à concepção do estado-educador e da educação como rigorosa função do estado. Algumas dimensões da educação em Platão merecem destaque, a saber: a dimensão do éros-educativo cuja metodologia é o amor que une educador-educando na gradual subida rumo ao "Bem" sumo. Aristóteles (384-322 a.C.) diz que o escopo da pedagogia e da educação é a felicidade. Esta constitui um harmonioso desenvolvimento e perfeição de todas as potencialidades à luz da racionalidade.

A história da pedagogia trás uma contribuição bastante válida, a meu ver, para que se colha a visão de homem que está por trás de toda uma ação educativa. Dos gregos, colheremos este ideal do homem livre, com direitos e deveres, capaz de participar ativamente da vida pública de uma maneira consciente e democrática. Escolher destinos, debater idéias, ser protagonista, ator e construtor no processo de fazer a polis acontecer: eis a paidéia democrática! Não um mero expectador passivo. E no substrato desta conquista titânica de alta envergadura política está, com certeza, a visão de pessoa humana que se articulou e difundiu na educação. Quando a ação educativa é cerceada ou mergulha em restrições ideológicas, ou quando certos populismos messiânicos tendem a domesticar os cidadãos ignaros em currais ou em circos onde imperam festas e esmolas, então não teremos liberdade em chave de democracia marcadamente participativa e consciente. É preciso multiplicar os agorás enquanto espaços de discussão dos problemas, de busca de solução, numa vivência participativa e operosa da política. Com efeito, política não se reduz ao que se discute ou se decide, se voto ou se executa no poder executivo ou legislativo. Os gestores públicos e os representantes do povo exercem em nome do povo o poder, mas todos são responsáveis com o bem de todos, ou seja, o bem comum. Se a escolha consciente pelo voto, de tais políticos faz da democracia um meio idôneo para o exercício do poder, então há que se ter presente a idoneidade moral e a capacidade adequada para o exercício de tais mandatos.

Não só nos períodos eleitorais, mas continuamente é preciso fazer acontecer e acionar os agorás. Sugere-se, pois, que uma educação focada na formação para a liberdade responsável, a partir de valores cívicos consolidados; tal foi o quinhão a nós transmitido pela cultura helênica. Cabe não deixá-lo esvair-se, a fim de que a política seja uma verdadeira busca do bem comum, sem imiscuir-se em tétricas falências éticas que só geram atraso e corrupção. A pessoa humana foi chamada a ser feliz. Os gregos visavam fortemente essa meta. E na liberdade, alicerçada e substanciada na verdade, a felicidade não faltará para juntar-se às suas inseparáveis companheiras. Com certeza, ao se falar de política como se viu acima, o bem comum é ponto de chegada, onde as instituições são ponto de passagem. Bem comum, onde o estado é educador por facilitar e animar não só o cultivo da prosperidade e do desenvolvimento sustentável, a partir do trabalho, cuidado com meio ambiente e incentivo da produção, bem como a distribuição o mais razoável quanto possível, de tais bens. Além disso, é também o educador, o incentivador e protetor das liberdades e direitos inalienáveis de todos e de cada indivíduo. Cabe ao estado ser guardião zeloso da vida desde sua concepção até o seu ocaso natural, da dignidade da família, da sociedade, da própria política, a liberdade de expressão e de culto religioso, bem como de convicções pessoais, desde que não atente aos princípios acima referidos, da justiça social e das condições de vida plena para todos. Há que se insistir nesse projeto político onde não haja mais espaço para figuras reconhecidamente incompetentes ou marcadas pelo descaso para com os princípios da ética na política e na gestão dos recursos públicos. Urge se precaver das pessoas que vivem uma ética oportunista em seus discursos de tempos de campanha. Jesus lembrou da necessidade de não se enganar com lobos fantasiados de ovelhas, em suma, importa buscar e fazer acontecer a paideia democrática!. Parece um sonho impossível? Será uma quimera? Uma utopia distante, da qual só nos resta rir ou abanar a cabeça dela desistindo? Quanto mais valores e sonhos são taxados como inatingíveis, mais inatingíveis eles se tornam, não em si mesmos mas para quem deles desistiu E por ter entregue os pontos, tal desistente ficou no meio do caminho, perdeu o trem da história e quem sabe, por sua atitude culposamente resignada, será lançado no lixo dessa mesma história que não quis ou teve medo de edificar.



Pe. Marcos Chagas.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Política: um tempo de reflexão e escolhas!


Vive-se um tempo marcado por um grande evento: as eleições. Com efeito, é um tempo importante, decisivo, capaz de colocar representantes do povo e governantes os quais prestarão o serviço da autoridade (esperemos que não seja um uso irresponsável do poder). Falo de autoridade pois a palavra quer dizer: Auctoritas: "aquele que faz o outro crescer"

Várias coisas preocupam: as idéias, os oportunismos eleitoreiros, a corrupção, as mentalidades, o jogo de interesses, os contra-valores. Alguns bispos têm alertado a respeito do risco de termos novos Herodes, abrindo brechas para que inúmeros inocentes sejam cruelmente assassinados. Além disso, a corrupção, as pressões e opressões tendem a aviltar o jogo democrático. A festa democrática não deve descambar em um velório democrático.
Preocupa também os novos eleitos para o congresso: o palhaço Tiririca (será que sabe ler e entende o que leu?), gente de má índole (fichas sujas ou notoriamente envolvidos em corrupção) e outros sem competência, além de gente que nega fatos consumados, comprovados ou vivem contradições grosseiras, na patética tentativa de negar evidências. É preocupante que haja políticos exageradamente incomodados com a liberdade de imprensa ou desgostosos em ouvir qualquer pensamento ou posicionamento diferente ou dissonante do seu. Se tem eleitor que é alienado (não acompanha a política, não analisa o histórico dos candidatos ou vota usando critérios tolos e infantis ou marcados pela maldade mesmo), por outro tem muito eleitor corrupto (vende o voto por dinheiro e outros favores). Isso trava as possibilidades de crescimento e avanços efetivos de um país. Não somente em termos de PIB ou mesmo de distribuição de renda, mas também em termos de ética, de respeito pelo verdadeiro bem comum, pela justiça e honestidade, retidão e transparência. Entre os políticos parece que quem não entra no jogo da corrupção, da compra de votos através de favores e agrados, não tem vez para ganhar uma eleição. É como se não houvesse espaço para gente séria, do bem, com boas intenções e devida competência para honrar o parlamento e o executivo, engajados na busca do bem de todos e não só de uma curriola. É alarmante a hipocrisia e a mudança de opinião em função das conveniências eleitoreiras.
Os rumos do país estarão nas mãos da pessoa que será eleita para estar à frente do executivo nacional, no segundo turno destas eleições. Os debates se acirram; contrapõem-se as idéias, os projetos, a história e os valores dos candidatos. Precisamos pensar, avaliar e escolher com seriedade. O Brasil, pátria amada e mãe gentil, precisa de pessoas comprometidas com o bem comum para fazer desta nação uma grande família, onde o progresso e a prosperidade aconteçam com o respeito à liberdade de expressão, bem como na defesa férrea dos direitos inalienáveis de todos os homens e mulheres, cidadãos e cidadãs desta terra de santa cruz

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Abraça Jesus crucificado, amante e amado


Caro filoteu, amigo de Deus. Deixo-te com estas palavras profundas, sublimes, carregadas da sabedoria da cruz e da inteligência da fé, exortações incomparáveis de Catarina, essa amiga apaixonada do Senhor, alma esposa do mais alto gabarito, crucificada com Cristo e com Ele transfigurada em santidade.

Título da carta: Abraça Jesus crucificado, amante e amado
“Querida irmã em Jesus,

Eu, Catarina, serva dos servos de Jesus, escrevo-te no Seu precioso sangue, desejosa de que te alimentes do amor de Deus e de que dele te nutras, como do seio de uma doce mãe. Ninguém, de facto, pode viver sem este leite!
Quem possui o amor de Deus, nele encontra tanta alegria que cada amargura se transforma em doçura e cada grande peso se torna leve. E isto não nos deve surpreender porque, vivendo na caridade, vive-se em Deus: ‘Deus é amor; quem permanece no amor habita em Deus e Deus habita nele’. Vivendo em Deus, por conseguinte, não se pode ter amargura alguma porque Deus é delícia, doçura e alegria infinita!
É esta a razão pela qual os amigos de Deus são sempre felizes! Mesmo se doentes, necessitados, aflitos, atribulados, perseguidos, nós estamos alegres. Mesmo quando todas as línguas caluniosas nos colocarem em má situação, não nos preocuparemos, mas nos alegraremos com tudo porque vivemos em Deus, nosso repouso, e saboreamos o leite do seu amor. Como a criança suga o leite do seio da mãe, assim nós, enamorados de Deus, atingimos o amor de Jesus Crucificado, seguindo sempre as Suas pegadas e caminhando com Ele pelo caminho das humilhações, das penas e das injúrias. Não procuramos a alegria se não em Jesus e fugimos de toda a glória que não seja aquela da cruz.
Abraça, Jesus Crucificado, portanto; elevando a Ele o olhar do teu desejo! Toma em consideração o Seu amor ardente por ti, amor que O levou a derramar sangue de todas as partes do seu corpo!
Abraça Jesus Crucificado, amante e amado e nele encontrarás a verdadeira vida, porque Ele é Deus que se fez homem. Que o teu coração e a tua alma ardam pelo fogo do amor do qual foi coberto Jesus cravado na cruz!
Tu deves, portanto, tornar-te amor, olhando para o amor de Deus, que tanto te amou, não porque te devesse obrigação alguma, mas por um puro dom, impelido somente pelo Seu inefável amor. Não terás outro desejo para além daquele de seguir Jesus! E, como que inebriada do Amor, não farás caso se te encontras só ou acompanhada: não te preocuparás com tantas coisas mas somente de encontrar Jesus e segui-lo!
Corre e não estejas a dormir, porque o tempo passa e não espera nem um momento!
Permanece no doce amor de Deus.

Doce Jesus, amor Jesus.»

(Santa Catarina de Sena, "Cartas", carta 165)

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

A TRAMA E O DRAMA DA HISTÓRIA HUMANA SOB A GUIA DA PROVIDÊNCIA DE DEUS NO PENSAMENTO DE SANTO AGOSTINHO.


Cidade de Deus. A monumental obra de Agostinho, desdobrada em vinte e dois livros, é uma profunda reflexão sobre a vida, a história, o sofrimento e o sentido da vida. O autor empregou treze anos para redigir tal obra que ele considerara imensa e árdua. Havia passado um século que os cristãos passaram a gozar da liberdade para cultuar o Deus revelado por Jesus Cristo e destronara pouco a pouco o paganismo e seus deuses.

Agostinho faz uma reflexão mais atenta da história e não permite a si, nem a outrem, leituras superficiais. Com efeito, ele não se limita às convulsões sangrentas da invasão dos bárbaros. O horizonte se amplia, para que se perceba o fio condutor da história universal. Os godos de Alarico, com seus cavalos vindos do norte, transformam a cidade eterna em uma fogueira cuja fumaça se inala em todo o império, gerando consternação e pasmo. Entretanto, tudo isso não passa de minúsculo episódio da luta permanente, cujos combatentes são a Cidade de Deus e a Cidade Terrestre. “Para ele, tanto as civilizações como os Estados envelhecem e morrem. O importante é escrever de modo cristão nas linhas tortas da história humana” (HAMANN, 1989, p. 288-289). Com efeito, aos conflitos internos, eram adicionados os acontecimentos da Itália e de Roma que se refletiam sobre a cidade. Os cristãos viviam uma perplexidade desconcertante oriunda das recriminações dos pagãos, e isto, não poucas vezes lhes era mais penoso para enfrentar que a própria ruína da sede do império. Com oportuna sensatez a contra-argumentação não se faz esperar: “Abri as portas de todas as guerras, quer anteriores à fundação de Roma, quer posteriores a seu nascimento e à organização de seu império, lede-as e mostrai-nos estrangeiros, inimigos, senhores de cidades conquistadas, que tenham poupado aqueles que sabiam estar refugiados nos templos de suas divindades, mostrai-nos algum chefe bárbaro que, em cidade por ele forçada, haja ordenado se poupasse toda pessoa surpreendida neste ou naquele templo” (AGOSTINHO, 1989, p. 29).

Em novembro de 410, vive-se, no norte da África, o tempo da colheita das azeitonas. E Agostinho, a exemplo de Cristo, qual competente mistagogo , serve-se da vida cotidiana do povo para instruí-lo a respeito dos sublimes mistérios, entre os quais o mistério da cruz, eterna fonte de ressurreição. Segundo o doutor da graça e da providência de Deus na história, benefícios e calamidades estão misturados. Colher os primeiros significa também colher as segundas. O mundo, então, assemelha-se à prensa em ação, onde as azeitonas colhidas e depois de esmagadas tornar-se-ão ou azeite dourado, preciosamente recolhido ou bagaço que escorre para o esgoto. Os cristãos deverão estar atentos a estas lições (AGOSTINHO apud HAMANN, 1989). Ante os dramas vividos e as perplexidades que enfraqueciam os corações mais débeis em busca de uma leitura de fé a respeito do desabamento das seguranças humanas, no que tange a tais escolhos, o bispo assim se expressa aos seus fiéis: “O mundo está transtornado como se estivesse numa prensa. Coragem, cristãos, sementes de eternidade, peregrinos neste mundo, a caminho do céu! As provações que se multiplicam são o destino dos tempos cristãos, mas não constituem um escândalo para o cristão. Se amas este mundo, blasfemarás contra Cristo. E é isso o que te sopra o teu amigo, o teu conselheiro. Mas não deves escutá-lo. Se este mundo está sendo destruído, diz a ele que Cristo o previu” (AGOSTINHO, apud HAMANN, 1989, p. 274).

Ainda na condição de peregrinos, os cristãos não se devem considerar alheios ao que acontece na terra, haja vista que a cidade celeste não está apenas na bem-aventurança eterna. Cabe aos discípulos de Cristo lutar para que a Cidade de Deus cresça na terra, avançando sobre o terreno da Cidade Terrestre. Começa neste mundo e cabe-lhes construí-la, sem seu primeiro estágio. “Com alicerces provisórios, o arquiteto do universo constrói a cidade permanente, em direção à qual nos pede que direcionemos nossos passos” (AGOSTINHO apud HAMANN, 1989, p. 308). Ademais, o incessante e luminoso objetivo do cristão, na terra, será o de guardar sua identidade de peregrino da Cidade de Deus Algo de grande importância em tal reflexão é a linha divisória das duas cidades a qual é invisível, haja vista estar no coração de cada homem e mulher. “Se quiseres saber qual é a cidade e a que chefe obedeces, escruta teu coração e examina teu amor” (AGOSTINHO apud HAMANN, 1984, p. 306-307). Vem à baila, a partir dessa verificação interior, um drama que o coração agostiniano sofrerá penosa e ardorosamente: a divisão fragmentadora, a inquietude e anseio por esta unidade interior, sofridamente perseguida e nem sempre obtida: “Nosso coração está dividido. Quem semeou esta guerra em mim?” (Ib.). Na seqüência, a evocação do campo de batalha nos remete ainda outra vez para o coração humano: “A fronteira entre Cristo e o mal passa pelo interior de nós mesmos, entre nossa alma cristã e nossa alma pagã” (Ib.). Arrematando tal consideração, o bispo hiponense afirma a invisibilidade de tal fronteira: “É uma fronteira invisível para qualquer um além de Deus, que escruta os corações e as entranhas dos homens” (Ib.). Este filósofo cristão da história humana a interpreta à luz dos dois amores que se digladiam pelo coração humano, a fim de levá-los a ser construtores de cidades de alicerces, estruturas, consistências e finalidades antagônicos e opostos: “Dois amores, pois, duas cidades, a saber; o amor próprio levado ao desprezo de Deus, a terrena; o amor de Deus levado ao desprezo de si próprio, a celestial. Gloria-se a primeira em si mesma e a segunda em Deus, porque aquela busca a glória dos homens e esta tem por máxima glória a Deus, testemunha de sua consciência” (AGOSTINHO, 1990, p. 169).

Agostinho faz uma leitura esperançosa da história humana. Esta terá o seu ocaso com o Dia do Senhor, que será o dia oitavo, uma domingo sem fim, consagrado à ressurreição de Cristo onde terá se desdobrará o repouso eterno. Para isso, ocorre que o homem viva e cumpra sua essência, não mais na cupiditas, isto é voltado para si e para as coisas do mundo. Há que viver a cháritas, voltado para Deus e amando as criaturas em função de Deus. Os bens finitos hão de ser usados como meios e não devem ser desfrutados ou cobiçados como se fossem fins (REALE-ANTISERI, 2007). A mística da Cidade de Deus o requer!

BIBLIOGRAFIA UTILIZADA:

AGOSTINHO, Santo, A Cidade de Deus, parte I, 11ª edição, Petrópolis, Vozes, 1989.

-, A Cidade de Deus, parte II, 2ª edição, Petrópolis, Vozes, 1990.

HAMANN, A., Santo Agostinho e seu tempo, S. Paulo: Paulinas, 1989

REALE G.-ANTISERI, D., História da Filosofia. Patrística e Escolástica, vol. 2, 3ªed., S. Paulo: Paulus, 2007.