quarta-feira, 11 de agosto de 2010

O pobre Lázaro: uma história....


As exigências da justiça social no Evangelho: o exemplo de Lázaro, o pobre.




«havia um homem rico que se vestia de púrpura e linho fino e cada dia se banqueteava com requinte. Um pobre, chamado Lázaro, jazia à sua porta, coberto de úlceras. Desejava saciar-se do que caía da mesa do rico... e até os cães vinham lamber-lhe as úlceras. Aconteceu que o pobre morreu e foi levado pelos anjos ao seio de Abraão. Morreu também o rico e foi sepultado.


Na mansão dos mortos, em meio a tormentos, levantou os olhos e viu ao longe Abraão e Lázaro em seu seio. Então exclamou: “Pai Abraão tem piedade de mim e manda que Lázaro molhe a ponta do dedo para me refrescar a língua, pois estou torturado nesta chama”. Abraão respondeu: “Filho, lembra-te de que recebeste teus bens durante tua vida, e Lázaro por sua vez os males; agora, porém, ele encontra aqui consolo e tu és atormentado. E além do mais, entre nós e vós existe um grande abismo, a fim de que aqueles que quiserem passar daqui para junto de vós não o possam, nem tampouco atravessem de lá até nós”.


Ele replicou; “Pai, eu te suplico, envia então Lázaro até à casa de meu pai, pois tenho cinco irmãos; que leve a eles seu testemunho, para que não venham eles também para este lugar de tormento”.


Abraão, porém respondeu: “Eles têm Moisés e os Profetas: que os ouçam”. Disse-lhe ele: “Não, pai Abraão, mas se alguém dentre os mortos for procurá-los, eles se arrependerão”. Mas Abraão lhe disse: “Se não escutam nem a Moisés nem aos Profetas, mesmo que alguém ressuscite dos mortos, não se convencerão»[1].



Este texto, todo transcrito nesta postagem tem como objetivo mostrar a responsabilidade e o compromisso dos cristãos, especialmente os que possuem mais recursos, neste processo de administrar os bens de Deus. Todo este capítulo 16 de Lucas é uma inteira catequese sobre o uso das riquezas. Trata-se de uma parábola proposta de considerar a condição presente à luz da eternidade.

O homem rico que usava mal dos seus recursos materiais, porque o seu egoísmo profundo o centralizava em si mesmo, nas próprias comodidades e nos próprios caprichos é um ensino forte, exigente, comprometedor. Como se percebe, é um alguém sem nome, um anônimo nesta história de salvação uma vez que no seu egoísmo, ele se excluiu da salvação de Deus. Este rico é imagem de um alguém despersonalizado, em vista de sua existência falida, esterilizada, tornado infrutífero pela sua centralização em si mesmo. Não pensar nos outros necessariamente significa ignorar o próprio Deus, Ele que é uma comunidade, a plena comunhão, a partilha, diversidade e unidade no seu mistério trinitário. O eu se descobre relacionando-se com um tu, para formar um nós. Quem não se relaciona não ama e quem não ama não pode descobrir-se. O rico ficou conhecido como epulão, isto é, banqueteador, um comilão. Como dizia Paulo, «seu fim é a destruição, seu deus é o ventre, sua glória está no que é vergonhoso, e seus pensamentos no que está sobre a terra»[2]. Jesus tira o pobre do anonimato: ele tem um nome, ele é alguém, seu nome é Lázaro que significa “Deus ajuda”. Fome e doença o fazem prostrar-se diante da porta do rico, esperando de matar a fome de tudo que cai na mesa do rico, esperando de matar a fome de tudo que cai da mesa farta do abastado egoísta. Até mesmo o cachorro tem piedade de Lázaro e o rico não percebe, é negligente.

Esta parábola nos oferece um quadro feito de imagens muito sugestivas, simples, de tonalidades fortes, sem detalhes ou refinamentos literários. É por isso que nos obriga a buscar sinceramente o essencial. De fato, no tempo o homem decide o seu destino eterno, vida ou morte, e não existe outra possibilidade de opções. Quem confia em si mesmo e em uma felicidade egoísta, construída com as próprias mãos, entra nas trevas e desde já é um cego, ao ponto de não ver o mendigo sentado à porta de casa.

O silêncio do pobre mendigo parece ser o traço característico do vulto de Lázaro. Duramente provado pela vida, descuidado por aqueles que poderiam ajudá-lo, ele se cala. Nenhuma palavra contra Deus ou contra os homens. Nem rebelião, nem críticas, nem inveja. A morte chega para Lázaro como uma libertação. O sono que desfecha o percurso terreno se apresenta como um divisor de águas implacável, determinante e sob a luz inatacável da verdade que brota de Deus cada qual segue o seu infalível destino eterno. Cada um colherá o que plantou.

Jesus retira o véu e nos introduz na eternidade mostrando-nos o grande banquete da eternidade. Lázaro é um dos destacados comensais. É como diz a Escritura: «Levanta do pó o fraco e do monturo o indigente, para os fazer sentarem-se entre os nobres e colocá-los num lugar de honra»[3]. Oposta é a sorte do rico que entre os tormentos infernais vê o pobre do outrora e ousa pedir auxílio para sua inexorável pena. O ardor lhe devora o paladar, o mesmo paladar que antes de deleitava em finas iguarias. As opções da vida presente selam de maneira definitiva a imutável as condições da vida eterna. Por isso, como o apóstolo Paulo, o cristão pensa e vive em função da eternidade: «Mas a nossa cidade está nos céus, de onde também esperamos ansiosamente como Salvador o Senhor Jesus Cristo, que transfigurará o nosso corpo humilhado, conformando-o ao seu corpo glorioso, pela força que lhe dá poder de submeter a si todas as coisas»[4].

Nem mesmo um milagre como a ressurreição de um morto – diz Jesus fazendo alusão a si mesmo – poderia aliviar o endurecimento do coração de quem incessantemente se recusa a escutar e levar à sério o que dizem as Escrituras. Quem converte e salva não são necessariamente os prodígios (até a ressurreição de Lázaro[5], da filha de um chefe[6], do filho da viúva[7] e do próprio Senhor[8]) não foram suficientes para convencer as pessoas fechadas e de coração duro. Sobre estas dificuldades da aceitação das óbvias evidências da ressurreição do Senhor por parte das lideranças religiosas do tempo de Jesus, se percebe o quanto essa verdade é grande. Eles tiveram uma ótima oportunidade de tornarem-se testemunhas da ressurreição de Jesus e permaneceram expectadores que preferiram vantagens materiais, prestígio e acomodação. Caminharam na mentira. Por isso, nem a ressurreição do Senhor para estes conseguiu mudar os rumos de uma opção direcionada por um coração endurecido. Somente um encontro silencioso, humilde, orante e meditativo, reflexivo e contemplativo com a Palavra de Deus. Um encontro que leve a pessoa a se dispor a viver e transbordar o mistério contemplado, somente isso poderá levar a uma transformação consistente de quem necessita de encontrar-se com o perdão e a graça revigoradora de Deus. São Luís Gonzaga, outrora nobre, fez-se religioso; ele reflete com muita sabedoria e precisão sobre esta realidade: «Não devemos blasonar por causa do nosso nascimento, porque no fim da vida as cinzas de um príncipe não se distinguem das de um pobre qualquer!

Quem mais alto está por destino do nascimento, pela riqueza de bens, pela elevação da cultura e do engenho, tanto mais deve prestar contas a Deus dos seus atos e da sua vida.

Quanto menor do que os outros o homem se fizer, tanto maior será, porque quanto mais alguém é humilde, tanto mais semelhante é e chegado a Cristo, o qual será acima de todos»[9]. Nesta mesma linha S. Gregório Magno ensina: «Que cada um seja juiz equilibrado entre si e os pobres. Que uma comiseração alegre e segura descarte qualquer falta de confiança; e aquele que ajuda ao indigente compreenda que está dando a Deus a esmola que distribui»[10].

Comenta o doutor místico: «Os sabores que deliciam o paladar ocasionam diretamente gula e embriaguez, cólera e discórdia, falta de caridade para com o próximo e os pobres, como teve para com Lázaro aquele mau rico, que se banqueteava cada dia esplendidamente (Lc 16, 19). Daí nascem ainda as indisposições corporais, as doenças, e também os movimentos desregrados, porque se aumentam os incentivos da luxúria. Por sua vez, fica o espírito como submerso em grande torpor; o desejo e o gosto dos bens espirituais diminui de tal sorte que já não os pode suportar, nem mesmo se deter ou se ocupar neles. Esse gozo produz ainda o descontentamento de muitas coisas, distração dos demais sentidos e do coração»[11].Lázaro é acolhido pelos anjos do céu e Deus quer que os Lázaros de hoje sejam acolhidos pelos anjos da terra que são os cristãos os quais como mensageiros do Senhor devem assumir a realidade forte e exigente que somente a fé permite de enxergar: Lázaro é Jesus, o Cristo, disfarçado. Se lermos atentamente o texto de Mateus a respeito do juízo universal poderemos nos convencer disso[12]. Com efeito, uma figura sobrenatural emana da figura de Lázaro: é Jesus o qual não considerou um tesouro imperdível a sua natureza divina, mas se fez pobre para nos fazer participantes dos seus bens. Seu eterno e infinito amor O faz apresentar-se nas vestes da humildade e o fez atravessar o abismo existente entre o céu e a terra. E Jesus se senta à porta do nosso coração e bate... : «Eis que estou à porta e bato: se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele e ele comigo»[13]. Que Ele não permaneça faminto nos irmãos por não termos aberto para ele a porta do nosso coração como foi o caso do rico epulão.

[1] Lc 16, 19-31.

[2] Flp 3, 19.

[3] 1Sm 2, 8.

[4] Flp 3, 20-21.

[5] Cf. Jo 11, 1-44.

[6] Cf. Mt 9, 18-19.23-26. Veja-se também Mc 5, 21-24.35-43 e Lc 8, 40-56.

[7] Cf. Lc 7, 11-17.

[8] Cf. Mt 128, 11-15.

[9] R. BRUNELLI, Um homem chamado Luís, Loyola, S. Paulo, 1991, p. 113.

[10] S. GREGÓRIO MAGNO, Sermão sobre as coletas, XI sermão in Sermões, Paulus, S. Paulo, 1996, n. 2.

[11] S. JOÃO DA CRUZ, Salita del monte Carmelo, L. III, cap. 25.

[12] Cf. Mt 25, 31-46.

[13] Apc 3, 20

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