sábado, 18 de outubro de 2008

As três funções da Palavra

"Tua Palavra Senhor é luz para os meus olhos e lâmpada para meus pés"
(Sl 118, 105)
Envio para ti, caro Filoteu, algumas reflexões sobre a Palavra de Deus. O tempo é propício, nestes dias em que a Igreja se debruça, no sínodo da Palavra, sobre este tesouro que o Pai, pelo Filho, no Espírito Santo nos concedeu. Talvez sejam estas reflexões dotadas de um conteúdo um tanto acadêmico, mas aposto no conteúdo...

As funções da Palavra



1.1. As três funções da Palavra:- A informação: a palavra informa sobre fatos, acontecimentos e coisas. É uma função mais objetiva e diz respeito à ciência, à didática e à historiografia.- é expressão: quem fala se exprime, ou seja, diz alguma coisa de si mesmo. Um rosto inexpressível não seria um rosto humano. Exprimir-se significa por em movimento o próprio ser, sair de si e correr os riscos disso. Significa também desmarcar pelo mínimo possível a própria interioridade. - é apelo: porque a pessoa humana é um ser que se relaciona. O Adão bíblico dá um nome aos animais mas não se relaciona aos animais “tu a tu”. Ele necessitava de um alguém que lhe fosse semelhante (Cf. Gn 2,18). A pessoa humana vive para o encontro e a comunicação é um poderoso veículo deste encontro. A palavra é uma ponte, um traço de união.


1.2. a palavra é criativaA palavra não é apenas sopro e som, mas possui uma força criativa, toca, prende liberta. Algo da transcendência do ser pessoa humana manifesta-se e comunica-se nela. A palavra dá a cada um a revelação de si na relação recíproca com o outro. O eu se revela a um tu e vice-versa e desta comunicação surge a unidade do nós. Nasce uma comunidade (comum unidade), bem diferente da massa de gente, um amontoado de anônimos que se reduz a uma mera coletividade.


1.3. A linguagem da amizade e do amor:Na amizade e no amor, as revelações se tornam mais profundas e tantas coisas escondidas saem do silêncio e se tornam partilha. O eu mais profundo vive seu revolucionário processo de doação na força da confiança que brota da liberdade. Essa revelação inédita vai desencadear o processo nunca acabado da revelação de si e do outro. Eu me conheço melhor na medida em que me revelo a um outro. O fascínio e a força da presença do amigo enchem de encanto e de eficácia a palavra pronunciada como revelação corajosa. Quem se revela sabe de estar sendo acolhido de maneira hospitaleira no coração do amigo que o escuta. Deus colocou o homem no mundo para que ele viva.

2. A PALAVRA AMIGA DE DEUS
"O Deus invisível, na riqueza do seu amor, fala aos homens como amigos e conversa com eles para os convidar e admitir a participarem de sua própria vida" (Constituição Dogmática Dei Verbum do Concílio Vaticano II sobre a revelação cristã). Querendo revelar-se, Deus falou aos homens e mulheres usando uma linguagem humana para dialogar tendo em vista criar sólidos laços de amizade a fim de conduzir à comunhão consigo todos os que se abrirem à sua proposta de amor.Já no Antigo Testamento, a Bíblia expõe a ligação que Moisés tem com Deus: "O Senhor falava com Moisés face a face, como um homem fala com seu amigo" (Ex 33, 11). O escritor bíblico procurou exprimir a inexprimível intimidade de Deus com Moisés através do diálogo amigável, veículo de profunda comunhão. Moisés tem uma grande missão, uma enorme responsabilidade de conduzir o povo que fora libertado pelo poder de Deus da casa da escravidão no Egito. Este encargo explica a sede de contemplação que brota como uma torrente no seu coração. A revelação, antes de fazer conhecer alguma coisa, é um colocar-se diante de alguém, o Deus vivo em Jesus Cristo. A revelação é uma relação sobrenatural. Deus assumiu a iniciativa nessa comunicação: O Verbo de Deus se exprime com a Encarnação e depois com o Evangelho. A história da salvação narra precisamente este longo e variado diálogo que parte de Deus e mantém com o homem uma conversação variada e maravilhosa. Nessa conversa de Cristo com os homens, Deus faz compreender alguma coisa de si mesmo, o mistério de sua vida, absolutamente una na sua essência e trina nas Pessoas. Neste mistério Ele diz como deseja ser conhecido: como Amor e assim deseja ser honrado e servido. O diálogo se torna pleno e confiante. (AA 56, 1964).
Por isso, a resposta a esse diálogo é a fé. Crer em Jesus Cristo significa para o Evangelho de João, seguir Jesus, ou seja, assumir o seu projeto. Foi assim, que os discípulos tornaram-se amigos de Jesus, sobretudo porque Ele comunicou-lhes toda a revelação e, mediante o dom do Espírito Santo, fará com que compreendam.
Portanto:
4 ao revelar-se, Deus fala a linguagem da amizade e do amor. Deus chama e os chamados formam a assembléia dos convocados (ekklesìa)
4A Palavra de Deus se torna manifestação do homem a si mesmo, torna-se auto-compreensão. Conhecer a Deus necessariamente levará a pessoa a conhecer-se.
4 O homem conhece a si mesmo e a plenitude do seu ser e do seu destino não por aquilo que ele mesmo produz, procura ou obtém através das conquistas através da experiência ativa, mas ouvindo a Palavra de Deus. E a Palavra de Deus nos falará do Ser Divino, Pleno, total que fez o homem e a mulher à sua imagem e semelhança que também são seres humanos. Deus chama a pessoa a ser e depois fazer. O homem é e por isso faz e nunca faz e por isso é!
4 Deus quando se revela, isto é, fala de si, dá-se a conhecer para convidar as pessoas humanas a entrarem em comunhão com eles.
4 O objeto desta revelação é a vida eterna [incorruptível juventude, vida sem fim]. O modo como essa vida eterna se revela não é apenas com palavras, mas com sua presença ativa, com todo o seu ser. A Palavra de Deus é uma Pessoa (não um conteúdo doutrinal, apenas): Cristo, Palavra de Deus feita carne, é a grande manifestação do Pai.
4 A Igreja (comunidade dos que acreditam), antes de viver o papel de ensinar (ser mestra), deve assumir o papel de ser discípula (aprender, escutar). A Igreja perpetua e transmite tudo o que ela é, tudo que ela crê. Os instrumentos da tradição da Igreja são: sua doutrina, sua vida, seu culto.
4 A Sagrada Escritura deve ser lida como obra de linguagem total, ou seja, todos os elementos desta comunicação (cultura do povo, os significados, a realidade, enfim, todo o contexto que esclarece o texto) ajudam a delinear a obra em que Deus me fala.  A Palavra de Deus deve ser, antes de tudo, ouvida, ou seja, a espiritualidade bíblica deve ser primariamente uma espiritualidade da audição de um interlocutor presente. A audição é a primeira atitude do diálogo. E o desembocar espontâneo do fluir da revelação divina é a acolhida (obediência) por meio da fé.
4A Palavra de Deus apresenta a revelação de modo popular, simples, não científico por causa da mentalidade e da cultura do homem judeu (ligado aos limites do seu tempo). Assim, a pregação e a formação bíblica tem o papel de completar, atualizar o que foi dito de um modo que para nós é incompleto na forma de expressão. A essência do conteúdo permanece, mas a expressão deste conteúdo exige uma atualização.

A REVELAÇÃO DE DEUS ACONTECE NA HISTÓRIA
O Deus que se revela é um Deus que age; Ele é presença e atua em parceria com o homem por ele criado à sua imagem e semelhança.O tempo é a matéria prima da vida. Ora, o tempo se desdobra na história e esta mesma história é construída e narrada por homens que nascem crescem e morrem. Geram outras vidas que por sua vez continuarão o processo de construção do mundo, descobrindo coisas novas, oferecendo novas contribuições tanto positivas quanto negativas para a humanidade no seu processo histórico de auto-descoberta e autoconstrução.A Bíblia nos descreve este processo acontecendo a partir de homens e mulheres que foram construindo com Deus, dentro da história e nunca fora dela, a revelação e a salvação. Esta ação é carregada de comunicação. Palavra é sinônimo de ação em Deus. Por isso, a história acontece pela ação das pessoas no tempo. Ora, na história Deus se comunica e por isso age. Assim a história está cheia da comunicação divina: Ele fala, interpela as pessoas, entra em relação com elas. A expressão máxima da revelação de Deus encontra no seu Filho Jesus Cristo o ponto mais alto de sua atuação histórica. A chegada do Salvador foi uma verdadeira plenitude dos tempos. Essa revelação aconteceu quando Jesus se fez um alguém histórico (um alguém que está no tempo e no espaço, que cresce, sofre, se alegra, faz parte de uma cultura, fala uma determinada língua, etc).
Continua em uma próxima postagem...
Um abraço para você Filoteu. Meu desejo é que esta reflexão te faça amigo da Palavra de Deus e se sinta abraçado por Ela...
Pe. Marcos.

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