sábado, 17 de outubro de 2009

Reconhecer o nada




O reconhecimento do nada é a verdade consumada. Isso nos faz caminhar. Há de ser o antídoto poderoso contra certas formas explícitas ou camufladas de orgulho e de soberba, ajudará a pessoa a não viver de ilusões, nem na mentira. As dificuldades serão não somente suportadas, mas também superadas e até amadas com maior facilidade. E isso só acontece no coração humilde, despojado, vazio de si, da própria glória. Por isso, ocorre compreender que «só a humildade tem algum poder. Não a humildade adquirida por raciocínios, mas uma luz clara e verdadeira que num instante capta o que o trabalho da imaginação não alcançaria por muito tempo, acerca do nosso nada absoluto e do bem infinito que é Deus»[1].
Esse nada, por mergulhar a pessoa na verdade, criará um clima de serenidade e de alegria, porque o despojamento livra o coração de tantas preocupações inúteis.
«É humilde, ensina S. João da Cruz, quem se esconde em seu próprio nada e sabe abandonar-se a Deus»[2].
Não existe auto-estima sem um mergulho corajoso na verdade de Deus e na nossa própria verdade. A autopercepção, além de positiva, há de ser verdadeira, fundada na realidade, longe das ilusões fantasiosas e enganosas. Tudo isso fará com que a pessoa tire os olhos das criaturas, no que diz respeito a esperar muito delas, nas suas capacidades e talentos, na santidade ou nas virtudes que possam ter, das vantagens e gratificações que sua amizade possa nos oferecer. Os olhos do que vive na verdade se fixarão em Deus como o único sumo Bem. As pessoas humanas serão vistas na sua verdade e realidade.

Declama com imensa sabedoria a grande doutora, Teresa de Jesus:

«Formosura que excedeis
A toda formosura,
Sem ferir, que dor fazeis!
E quão sem dor desfazeis
O amor pelas criaturas!

Ó laço que assim juntais
Dois seres tão diferentes
Por que é que vos desatais
Se, atado, em gozos trocais
As dores mais pungentes?

Ao que não tem ser, juntais
Com quem é Ser por essência
Sem acabar, acabais;
Sem ter o que amar, amais;
E nos ergueis da indigência
»[3].


Deste modo não haverá possibilidade de se espantar ou se escandalizar com os erros ou fraquezas que o outro venha a manifestar. As decepções serão sobremodo redimensionadas e trabalhadas, se é que existirão. Esperar em Deus significa não esperar em ninguém mais, em nada mais a não ser o próprio Deus.
«A justa "estima" de si mesmo é, portanto esta: reconhecer o nosso nada! Este é o terreno sólido ao qual tende a humildade! A pérola preciosa é precisamente a sincera e pacífica persuasão de que, por nós mesmos, não somos nada, podemos pensar nada, não podemos fazer nada»[4]. Existe, portanto, um Doador e o que recebe agradecido e feliz esta doação. Por amor, administra esta doação no melhor dos modos. Com muita propriedade afirmou um certo autor: «Somente quando me volto para o doador de tudo, com o coração de mendigo que sabe ser imensamente pobre, que sabe não ser mais que puro dom, somente então estou na dimensão que me corresponde»[5].
O nada nunca pode chocar quem vive na verdade. A verdade nos levará a conhecer o Tudo de Deus e, por conseguinte, nós como felizes beneficiados, pois nada somos, nada temos, nada podemos. E essa mentalidade levará a pessoa a viver numa profunda humildade, pois a humildade é a mais consumada verdade. Assim nos ensina S. Teresa de Jesus: «Deus é a suma verdade – e ser humilde é andar na verdade. Grande verdade é que de nada de bom procede de nós, a não ser miséria de ser nada. Quem não entende isso anda na mentira. Quem melhor o entender, mais agradará à suma Verdade, porque anda em sua presença»[6].
A auto percepção positiva de si mesmo deve ajudar a pessoa a se colocar na linha de ter o sentido das próprias limitações e criar no homem a disposição para a aceitação realista de si mesma. Essa disposição de ânimo, que se traduz numa sadia humildade e na simplicidade autêntica, vai levando a pessoa a encarar o outro e Deus de modo muito maduro e evangélico. O outro é acolhido e respeitado como um tu que é diferente, talvez mais aquinhoado do que eu e, isso nunca será razão para invejas, ciúmes, desconfianças e perseguições. Ao contrário, será algo como que se alegrar, a ser considerado positivo. A pessoa madura não se compara e se perceber no outro predicados e virtudes que ela não tem, isso não a ameaça, pois ela se aceita e não quererá ser o outro, alegra-se, conserva a paz na serenidade e se esforça para construi-se enquanto pessoa: ser único e irrepetível. O homem que se aceita, outrossim, se percebe e se acolhe a si mesmo como um ser limitado, coloca-se em justa dependência de Deus e em correspondente sentimento de segurança e confiança[7]. Será um alguém que entendeu bem o sentido de ter vindo do pó da terra[8]. Conhecerá a sua criaturalidade e sua contingência. Não viverá de ilusões e no engano do orgulho. Será humilde, será feliz.
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[1] S. TERESA, Caminho, c. 32, n.12. Os grifos são meus.
[2] S. JOÃO DA CRUZ, Ditos de Luz e Amor, n. 173 in P. SCIADINI (org.), Obras Completas, Vozes/Carmelo Descalço do Brasil, Petrópolis, 20006.
[3] SANTA TERESA, carta 165 in P. SCIADINI (org), Obras Completas, ed. Carmelitanas/Loyola, S. Paulo, 1995 . A santa escreve este poema em uma carta dirigida a seu irmão, D. Lourenço de Cepeda.
[4] R. CANTALAMESSA, A vida sob o senhorio de Cristo, Loyola, 19964, p., 194.
[5] CABRA, Amarás com todas as forças, 11.
[6] S. TERESA DE JESUS, Castelo interior ou moradas, VIas moradas, c. 10, n. 7.
[7] Cf. D. CASERA, Psicologia e aconselhamento pastoral, Paulinas, S. Paulo, 1985, p. 61.
[8] Cf. Gn 2, 7.

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